Este é um espaço dedicado aos sonhos.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Presépio

Há muito boa gente que anda por aí aos atropelos a quem uma boa iluminação destas daria jeito para lhes fazer ver o verdadeiro sentido do Natal.
Eu já perdi o do menino nas palhinhas deitado à mto tempo.
Fez sentido enquanto as minhas pequenitas mãos construíam aquele presépio, com aquele musgo fresco, o lago com papel prata, a ponte romana, a cabana de madeira e cobertura de colmo, os montinhos de areia a fazer lembrar as dunas do deserto da Arábia onde desenhava os caminhos dos reis magos com farinha branca de neve.
As bolas vermelhas e as fitas cor de ouro ficavam cá por baixo pois a asitas de então ainda não me deixavam voar às carumas mais altas. O cheiro a resina do pinheirinho verdadeiro entranha-se nas narinas e apegava-se-me às mãos. Que crueldade ambiental diriam muitos hoje. Que contente ficava eu ao avistar ao longe o pai trazer às costas aqueles ramos acabados de cortar ainda cheios de pinhas e caruma verde ainda húmida da cacimba da madrugada.
O Natal era a viagem ao Alentejo. A viagem pela qual se ansiava meses a fio. De comboio ou autocarro as viagens eram longas mas os meus olhos castanhos, já então celestes, não se cansavam nem pestanejavam. Devoravam tudo o que era paisagem em câmara rápida. O bulício da Estação do Entroncamento, as linhas e composições de vagões coloridos, imensas que desfilavam e se cruzavam eram uma das minhas diversões preferidas. Cotovelo assente na mini mesa da carruagem, mão no queixo, olhos esbugalhados a olhar pela janela embaciada com o bafo quente da manhã.
A chegada era presidencial. O tio M, à data eminente autoridade enquanto GNR da terra, vinha-nos sempre esperar, com a sua farda em tons verde tropa e cinza claro, botins de polainas pretas, um sorriso estampado e braços abertos para o seu traquinas. Tinha o seu "Verdinho" Opel Kadett, espada reluzente de tanto cromado, ali mesmo à nossa espera.
Em casa da tia as bolemas de canela, os belhoses de abóbora, as filhoses e uma caneca de cafe preto bem quente esperavam por mim.
As primas estragavam-me com tantos mimos de saudades de umas férias de Verão na capital já esquecidas e cujas lembranças mostravam-me agora reveladas em papel Kodak.
Era bom revê-las. Agora mais velhas. Agora com namorados. Agora com umas amigas bem giras. Como é que eu ainda não tinha reparado nelas?
Todos a cavalo no verdinho lá íamos nós rumo à aldeia dos avós. A bagageira não fechava de tantos embrulhos.
Ao longe de boina inclindada sobre a testa de tez morena pelo Sol de Inverno, aqueles olhos verdes do avô começavam a brilhar assim que nos avistavam. O abraço com que sempre nos recebia faziam-nos sorrir mto e semicerrar os olhos para que, sabendo-o já velho, aquele momento durasse eternidades. Não durou.
O Natal era passado dentro da lareira, literalmente. A avó com as suas mãos calejadas do trabalho do campo amassava a bom ritmo as filhoses sob o olhar atento das filhas. Elas nunca lá chegaram. Bem tentaram mas avó era mestre.
Um pouco de sumo de laranja, umas raspas de casca de laranja (por sinal as melhores do mundo cresciam lá mesmo no quintal, a laranjeira era a árvore preferida do avô e por isso percebi mais tarde qual a razão para tanto sumo, tão doce), aguardente, uma reza mto pessoal, azeite bem quente a ferver, um rolo da massa bem untado, uma tábua de madeira, um alguidar de barro vermelho, forrado com o pano de flanela branco cru e umas gotas de suor nas rugas de idade, para o milagre acontecer.
Finas e estaladiças. Crocantes e macias. Eram assim as filhoses da avó. As melhores do mundo.
O meu Natal era o melhor do mundo.

O sentido do Natal em terra de anjos é este. Perceberam?
Espero que possam todos algum dia ter percebido e sentido no vosso coração um Natal assim.

Especialmente aos que nestes últimos tempos puseram cá fora bandos de pardais à solta, as muitas ervilhas que por aí já pululam, não se esqueçam de lhes ensinar a construir o "presépio" que os anjos aqui do céu estarão sempre de olhos atentos à pequenada.

Feliz Natal.