Este é um espaço dedicado aos sonhos.

quarta-feira, março 21, 2007

Suspiro - Sopro do coração

No blog contos para a ana encontra-se sempre alguma coisa que apetece ler.
Já agora só porque é o do MEC Doutori Honoris Causa em questões Celestes e Lusas aqui fica não um excerto mas na íntegra um certo suspiro.

Suspirar

Miguel Esteves Cardoso

Foi há muito pouco tempo que suspirei pela primeira vez. Um suspiro fundo saído da cave da minha alma. As pessoas dizem que os suspiros se soltam. Mentira. Não se consegue prendê-los. Não se consegue fingi-los. Suspira-se. E pronto.

Sem qualquer respeito ou conhecimento de causa, fala-se de suspiros como se fossem puns do coração, arrotos suaves da alma. Mas os suspiros não são assim. Nem como lágrimas. Nem como risos. Nem como arrepios. São uma forma interior de comunicação. São uma forma superior de falar.

Tenho pensado muito em suspirar. Por exemplo, nunca se suspira sozinho. Diz-se 'ai vida' e enche-se o peito de ar, mas não se consegue suspirar. Sozinho é impossível. Para suspirar, um coração tem que estar encostado a outro. Perguntem-me porquê. E eu até sei. Mas não posso dizer.

Suspirar é o único gesto verdadeiramente social. Toda a gente conseguerir e chorar sozinha, mas para suspirar é preciso outra pessoa. Um suspiro é um acto involuntário de comunicação. Connosco, acima de tudo. E, se a pessoa com quem se está estiver atenta, com ela também.

E que quer dizer? "Eu amo-te"? "Sinto-me tão feliz contigo"? "Não tenho palavras"? Muito mais que isso. O suspiro é um sopro de pequenez, uma versão humana do vento com que Deus criou o mundo. No fundo é uma expressão de impotência diante de uma alegria que é maior do que nós.

Um suspiro quer dizer "Que pena isto não ser sempre assim". Quer dizer "Não tenho mão sobre esta felicidade". Afinal de contas "Quem sou eu para estar aqui?" Um suspiro é uma reacção à finitude e à temporalidade da vida. Diz "Que pena ser tudo passageiro… e que sorte eu estar aqui"

A voz de Amália, por exemplo, é o suspiro feito estrondo. A do Caetano Veloso, o estrondo feito suspiro. No suspiro está uma fatalidade ora séria, ora doce, mas sempre sincera. Mais que quaisquer palavras ou gestos, o suspiro é a expressão suprema de sinceridade. Nunca é um protesto - é uma rendição, um acto de aceitação do destino e, ao mesmo tempo, um sinal de gratidão pelo alivio, por muito temporário, das circunstancias e contingências da vida.

A primeira vez que suspirei fiquei assustado. Pensei que estava à beira da morte. E estava. Mas sem perigo. Foi como se a minha alma me tivesse abandonado um bocadinho, levada pela minha respiração. No meio de uma felicidade sossegada veio desassossegar-me a tristeza que era irmã dela, dizendo-me: "Não julgues que vai ser sempre assim" E depois "Mas aproveita enquanto é." E nós não julgamos, e aproveitamos.

E, a partir do primeiro suspiro, nunca mais parei. A alma tomou conta dos meus pulmões. E, cada vez que suspiro, tal é a novidade que ainda digo "Olha!", como se fosse menino a ver subir um balão. É ridículo, mas eu, que sempre fui acusado de ser bruto e insensível, passei a pensar que aqui estava a prova física que eu era, afinal de contas, uma pessoa sensível. Os meus suspiros reuniram-me comigo mesmo.

Desapareceu o meu terrível complexo de ser inglês, de ser um extraterrestre, de ser incapaz de exprimir os meus sentimentos senão através do desvio solitário da escrita. Latino. Humano. E foi muito bom. Até que enfim.

Fiquei com ódio a todos aqueles que usam a palavra "suspiro" para aqui e para ali. É mentira. Um suspiro verdadeiro não é só um baque. É uma experiência profunda pulmonar. Não se podem dar "suspiros" seguidos. O plural é uma figura literária. Tem que haver sempre um intervalo para que o sistema corpo-alma-coração se recompor.

Os maus poetas falam de suspiros como se fossem soluços. Como sofro de soluços sei do que falo. Detesto o verbo soluçar no sentido de chorar ou de mostrar pranto. Os soluços são uma grave disfunção esofágica. Há quem tenha de ser operado. Há quem morra.

Não se pode morrer de suspiros. Nem sequer se morre com um "ultimo suspiro", a não se que se esteja nos braços de alguém que se ama e de quem não apetece nada ir embora e se tenha, de repente, consciência que aquele é o ultimo momento de felicidade nesta vida. Por amor de Deus, não se confunda um suspiro com a banalidade do sistema respiratório. Como suspirador que sou não admito que se vulgarize este fenómeno filosófico e sentimental.

Se nunca suspirou na vida não sabe o que perde. É uma ausência deliciosa. É um raio de inteligência feito gesto. Fala-se muito, e mal. Do orgasmo como "pequena morte". Mas o orgasmo é simplesmente um acesso de inconsciência. Não ensina nada. Nada significa. Um suspiro, em contrapartida, é uma chamada de atenção, um prenúncio de mortalidade que deixa rastro, um exemplo de como a alegria e a tristeza (causada pelo pensamento interior que se pode… e que se vai perder essa alegria) andam ligados. Diz, ao mesmo tempo, "Não te fies na virgem" e "Dá graças a Deus".

Se nunca suspirou na vida, há certas condições que podem criar a oportunidade desejada. Deite-se numa cama com a pessoa de quem mais gosta. Fale de coisas inefáveis, polvilhando as suas frases com muitos "sempres" e "nuncas". Pense na sorte do acaso de se terem conhecido. Pense bem "Se não fosse…"

Preocupe-se com o futuro e deixe-se deslumbrar pelo presente. Depois dê um abraço muito demorado e fique a ouvi-la falar ou respirar. Mais tarde ou mais cedo, quando menos esperar, há-de chegar um suspiro. Primeiro é quase indetectável. Depois vão-se tornando cada vez maiores até se ser sacudido por um verdadeiro suspiro, daqueles que cortam a respiração, que até os vizinhos ouvem.

E, depois de dois ou três grandes suspiros, param. Já fizeram o que tinham a fazer. O peito fica concavo, o coração sossega, a alma torna-se inteligente. Resta a sensação de ser pequenino e pouco merecedor. Isso e a consciência da grandeza porque se teve a sorte de passar.

Tenho que parar por aqui. Estou à beira de atraiçoar um segredo. Cada um tem o seu. Cada um tem um nome. Chega. Tenho medo que, caso continue a tagarelar, os suspiros deixem de me acontecer. Respiro fundo, digo "Ai vida" em voz alta. E ficam por aqui as minhas asneiras profanas. E mais nada direi do verbo sagrado que é suspirar.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Cada vez que nos premia com um texto dele fico sem palavras. Dizer ou escrever qualquer coisa depois disso é insignificante. Ai vida...

12:48 da manhã

 
Blogger L de Luis said...

Flavita - Não escreva, suspire.

12:51 da manhã

 
Anonymous Anónimo said...

...


Deu pra ouvir?

12:55 da manhã

 
Anonymous Anónimo said...

Seu texto? Um suspiro da alma compartilhado. Obrigada.

2:14 da manhã

 

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